A conversa do surdo

Há um tipo novo nesse gigantesco supermercado humano que conta com mais de 7 bilhões de itens. Trata-se daquele que fala contigo ao mesmo tempo em que conversa no WhatsApp do celular. Costuma aparecer no retrovisor do seu carro, sentado no banco de trás, onde aproveita que você está de costas para manter aquele diálogo fraudulento, em que ele fala mas não presta atenção em nada do que você diz. E há ainda os mais ousados, ou adictos terminais, que não se acanham de cometer essa descortesia mesmo quando estão frente a frente com você.

Aconteceu comigo recentemente. Não uma, algumas vezes.

Uma vez foi um cara a quem eu dava carona no banco traseiro do carro. Tentei entabular uma conversa, afinal ele era a visita. Deixei-o introduzir um assunto de sua preferência. Ele escolheu o par de chifres que uma garota lhe plantou no alto da cabeça. Tudo bem, fui educado, achei que ele precisava desabafar. Disse-lhe que quem não passou por isso ainda vai passar, que ele ainda era novo, poderia participar ainda de muitas touradas... brincadeira.

Foi aí que notei que eu falava sozinho naquela minha ladainha consoladora. Ele apenas jogava algumas frases e, na minha vez de cumprir a parte que me cabia no diálogo, o infeliz lia e digitava mensagens no WhatsApp dele. Ou seja, o que eu falava ficava sempre sem uma resposta, sem um comentário do meu pseudo interlocutor. Quando ele percebia que minha fala havia acabado, erguia a cabeça e falava mais alguma coisa, dentro do mesmo assunto mas sem relação nenhuma com o que eu havia acabado de dizer. Isso ocorreu duas vezes: novamente eu dizia meu texto e novamente vinha lá de trás um silêncio que durava até ele perceber que era a vez dele falar. Na terceira vez, incomodado com aquilo, olhei pelo retrovisor e vi que ele ignorava minhas assertivas, cabeça baixa, olhos enterrados no maldito celular.

Desisti da conversa e seguimos em silêncio pelo restante do trajeto. Eu dirigindo e ele às voltas com seus chifres e seu celular.

Minha filha, outra adicta do WhatsApp, também costuma fazer isso quando está no banco de trás. Finge que conversa, mas na verdade me deixa no vácuo até que eu canse e me cale.

É um mal destes novos tempos, diferente da infidelidade, que vem de longe.

Comentários

  1. Quanto mais conectado, mais solitário se está, provado está, pelo menos para os raríssimos mais lúcidos como você, digamos assim. Este comportamento patético, fruto da má-educação, tornou-se insuportável ao ponto de pessoas se reunirem, e cada uma com seu badulaque ou tranqueira eletrônica, mal se falando.Chega a ser caricato/bizarro/deprimente.Até namorados namoram mais o celular, credo! Já vi casais por horas sem trocar uma palavra, mas teclando sem parar.Cada um sabe ou deveria saber de si. Não admito em hipótese alguma que um pessoa que esteja falando comigo fique teclando ou vendo mensagens. Simplesmente, se acontecesse (escolho bem meus educados/especiais interlocutores rsrs), teria a finesse de dizer a ela que conversaremos outra hora, pois respeito a necessidade que ela tem de interagir com a máquina (ainda sou de carne e osso, suponho).

    O mais engraçado é que a pessoa está sentada na sua frente e teclando com outra a quilômetros de distância. E quando ela se encontra pessoalmente com esta outra, não conversa com ela e sim com você, que agora é quem está longe.Dizem que o WhatsApp é a morte do diálogo, literalmente o fim de papo nestes tempos líquidos, vazios, medíocres/alienados e que tais.

    Esta doença está tão séria, que , eventualmente, tem umas criaturas nas salas de cinema que ligam o celular e fica aquela luz insuportável concorrendo com a tela. Ainda bem que tem sempre gente mais educada que pede para estes incivilizados/mal educados... apagarem aquela luzinha incômoda, como se não bastasse ter de ouvir o povo comer pipoca(de boca aberta) , chupar o canudinho da famigerada coca-cola, abrir lanches, balas, chocolates, etc...fazendo o barulho típico de quem não tem altruísmo ou educação. Cinema é uma coisa, restaurante ou bar é outra, convenhamos.Gente bem educada come ou bebe antes ou depois da sessão, sem exceções, até porque , o aconselhável é fazer refeições/lanches de 3 em 3 e 4 em 4 horas, né?

    Segundo a colunista Mônica Bérgamo, os ilustríssimos Caetano Veloso, Luis Fernando Veríssimo, Lima Duarte, Bia Lessa, etc., não usam esta traquitana rsrs tecnológica chamada de celular que virou , mesmo, além de praticamente um apêndice, um vício, uma pandemia. Você olha para os lados e "tá" todo mundo teclando. Toda hora ouvem-se aqueles barulhinhos chatos de mensagens chegando. Ninguém conversa mais ao vivo, só pelo celular. Sei que Chico Buarque tem sérias restrições quanto ao uso, assim como os falecidos João Ubaldo e o genial Rubem Alves. Não sou celebridade como os elencados - orgulho-me da minha "ninguendade" rs -, e também não possuo, ainda, pasme-se!...e espero jamais dele necessitar.

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